Primeira reitora negra de uma universidade federal no Brasil participou de aula magna, que debateu o papel da universidade na superação do racismo.
Texto e fotos: Daiani Cerezer
“O racismo é um crime perfeito. É um crime perfeito, porque ao mesmo tempo em que temos uma sociedade extremamente racista, as pessoas dizem que não são racistas. Ou seja, é uma sociedade de racistas sem racistas.” Com essa citação do professor e antropólogo Kabengele Munanga, a professora Nilma Lino Gomes, primeira reitora negra de uma universidade federal brasileira, falou para um auditório lotado, na UFRGS. O evento, que abriu o ano letivo, ocorreu no Salão de Atos da Universidade, na manhã de segunda-feira, 25 de março.
Nilma é professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, entre 2015 e 2016, ocupou dois ministérios: a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Pesquisadora atuante nas áreas de diversidade étnico-racial, políticas educacionais, movimentos sociais e educação, em 2014, ela foi reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Pedagoga, com mestrado em Educação (UFMG), doutorado em Antropologia Social (USP) e pós-doutorado em Sociologia (Universidade de Coimbra) e em Educação (UFSCar), Nilma recebeu diversos prêmios ao longo da carreira, como o Prêmio Efigênia Francisca (2016), o Diploma Abdias do Nascimento, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, e a Comenda Ordem do Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores.
O reitor da UFRGS, Rui Vicente Oppermann, destacou a importante contribuição de Nilma no cenário atual e destacou o papel histórico da UFRGS, em seus 85 anos de existência. “Essa aula magna reafirma a história de luta, democracia, resistência, absolutamente afinada com a sociedade e com a comunidade, de tal maneira que buscamos o desenvolvimento, a justiça social, defendemos a democracia em todos os seus aspectos.” Nesse sentido, continuou o reitor, a UFRGS é pioneira na implantação de ações afirmativas. Desde 2006, a universidade desenvolve “uma política de ações afirmativas, incluindo o acesso por cotas para a graduação. Ao longo desse processo, viemos construindo esse grande desafio, da superação das diferenças, buscando a diversidade e a inclusão. Esse desafio é permanente e deve superar as diferenças étnico-raciais que existem, historicamente, nesse país”. Para Oppermann, o racismo, no Brasil, é um tema extremamente difícil e sensível de ser abordado, “mas é chegada a hora e a vez de fazermos essa abordagem, não só na universidade, mas em toda a sociedade”.
Nilma lembrou o alerta que vem sendo feito pelos movimentos de juventude sobre a violência e o genocídio de jovens negros. “Será que discutimos essas estatísticas nas universidades?”, questionou. Segundo ela, a violência que a juventude negra “sente na pele” é atestada em levantamento como o Atlas da Violência. Ele mostra que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. De acordo com a campanha Vidas Negras, lançada pelas Nações Unidas em novembro de 2017, são 63 mortes por dia ou 23 mil por ano. “Será que essas vidas não deveriam estar aqui na universidade?”, perguntou Nilma.
Para ela, “o feminicídio no Brasil também tem raça e classe”. O Atlas da Violência registrou o assassinato de 4.645 mulheres no país, em 2016, numa taxa média de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. O aumento, em dez anos, foi de 6,4%. Porém, Nilma destaca que a situação é muito mais crítica entre as mulheres negras. Neste caso, a taxa pula para 5,3 assassinatos por grupo de 100 mil, enquanto entre as mulheres brancas a relação é de 3,1 por 100 mil, uma diferença de 71%.
A democratização do acesso à educação superior fez com a universidade enfrentasse o tema do racismo, o que, na opinião de Nilma, não significa que ele tenha sido superado. “A universidade pública enfrenta o racismo quando não se dobra ao pensamento único e ao obscurantismo” e deve “se renovar à luz do que mais avançado se tem produzido não somente no campo do conhecimento, mas também das lutas sociais”. Para Nilma, a universidade também precisa “reconhecer os conhecimentos produzidos pelos diversos sujeitos que dela fazem parte por direito e não por concessão, como os negros, indígenas, mulheres, quilombolas, pessoas com deficiência, população do campo, pessoas LGBT. Sujeitos que estão constitucionalmente inseridos na universidade devido a uma história de luta política, resistência, pressão, negociação, e que têm, no movimento negro, um protagonista na discussão com o Estado”.
A professora acredita que a superação do racismo passa pelo seu enfrentamento, que ocorre quando a universidade não nega a realidade e se contrapõe explicitamente a ela, “por meio de uma política acadêmica, de uma revisão curricular, da criação de pró-reitorias ou coordenadorias de ações afirmativas, de cotas na pós-graduação, e quando cria espaços de formação acadêmica, que possibilitam uma permanência bem-sucedida aos sujeitos das ações afirmativas. Quando a universidade faz isso, ela se coloca no campo político e epistemológico do combate e da superação do racismo, já que, para superar, é preciso enfrentar”.
Após a aula magna, a vice-reitora da UFRGS, Jane Tutikian, fez um alerta à sociedade e à comunidade acadêmica. “Vivemos uma das piores desigualdades sociais do mundo aqui no Brasil e uma universidade, que busca a pluralidade, como a UFRGS, tem a obrigação de reconhecer a diversidade social e cultural. A acolhida aos sujeitos da diversidade, aos saberes diversos, aos diferentes conhecimentos, é a acolhida efetiva da nossa sociedade. Esse é o verdadeiro sentido da universidade e o motivo de ela existir. Ainda há um longo caminho para percorrer e reconhecemos isso, mas a sua aula é para nós, um alerta, um chamamento para todos nós”, afirmou.
Sobre o cenário atual, o presidente da ADUFRGS, Paulo Mors, foi enfático: “eu falaria em obscurantismo, porque estamos vivendo numa época em que o ministro da Educação declara que a universidade deve ser para a elite, e imaginamos quem é essa elite”. Mors também questionou a professora da UFMG sobre o papel da imprensa na superação do racismo, que, segundo ela, “presta um desserviço para a nossa luta antirracial. As redes sociais de caráter emancipatório nos ajudam muito mais do que a mídia. Falo em redes de caráter emancipatório, porque hoje temos redes de caráter conservador. A grande mídia é um monopólio fechado, que está caindo”, disse.